
Quando minha filha se foi, eu entendi o significado de gatilho. O contato com qualquer situação que ativasse a memória do que eu havia passado recentemente me deixava a ponto de explodir. Uma tristeza que irradiava do peito em segundos, quase como um calafrio, e logo estava às lágrimas. Tanto que contei a uma amiga que tive que “aprender a chorar sem chorar”: quando sentia a onda vindo, eu já olhava para um ponto fixo, deixava ela quebrar, e voltava de onde havia parado. Não que eu não pudesse chorar, ou que alguém fosse me repreender. Mas é que às vezes a gente não fica tão confortável em desabar na fila do caixa do supermercado.
Os gatilhos variavam dos mais esperados (mulheres grávidas, bebês de todos os tamanhos, carrinhos e berços, crianças com seus pais) aos mais particulares, como músicas que havia ouvido durante a gravidez, a menção a lugares onde havia ido na companhia da minha pequena, um móvel que seria doado para abrir espaço para mais uma habitar nosso lar. Eles eram tantos, que me sentia enrolada em arame farpado: qualquer movimento mínimo me cortava profundamente a carne.
Aos poucos, me acostumei a eles. Tá bom que antes eu cogitei ser uma daquelas pessoas intransigentes que torcem o nariz para crianças e exigem seu banimento em restaurantes, aviões ou cinemas. Virei a cara para muitos bebês que não tinham nada a ver com a minha dor. Parei de olhar as redes sociais, só para não topar com mais uma notícia de uma famosa que engravidou (de onde surgiram tantas??).
Mas foi meu marido, que entende também o tamanho imensurável deste sofrimento, que mudou minha perspectiva. Ele disse que não queria viver num mundo sem bebês, pelo contrário, queria que todos eles estivessem lá, inclusive nossa Madalena. Entendi que a minha tristeza corria o risco de se tornar um tipo de redoma, um muro entre mim e os outros, quando tudo que eu queria era marretar essa separação.
Parei de desviar o olhar vítreo de crianças, entendendo que elas não são minha filha, e que devem sorrir, chorar e brincar do meu lado, e em qualquer lugar. Não parou de doer, e a onda ainda quebra. Talvez seja sempre difícil lidar com algumas situações. Outras, depois de alguns meses, parecem mais possíveis.
Os gatilhos podem nos transportar rapidamente para lugares dolorosos. Gosto de pensar que vamos revisitar os momentos que marcam nossa história, seja de forma consciente ou por obra do acaso. Eles formam parte da nossa vida, não serão esquecidos. Meu esforço tem sido no sentido de não viver o tempo todo na sombra, deixando a luz invadir também os meus dias. Há muitos tons de penumbra, em que claridade e escuridão se misturam num resultado ímpar.
Então se você tiver uma crise de choro ao ver o vídeo de um filhote de urso polar, não se sinta sozinha. Todos nós lidamos o tempo todo com uma carga enorme de pensamentos e sentimentos, e o luto parece fazer essa quantidade triplicar. Se deixe cortar, deixe as lágrimas rolarem. Até os sentimentos mais difíceis nos lembram de que estamos vivos, criando memórias e compartilhando afeto, da melhor forma que conseguimos.
Texto de Vanessa Henriques
Voluntária do ILP
Como superar a dor, perder filha p um cancer e a mãe 2 semanas apos